Desassosego último da noite

Findo o dia após o desenrolar das horas, entre o silêncio do momento último, deito-me na cama e aguardo. Passa um tempo sem um relógio que o defina em limite ou totalidade e segue-se outro. O vagar do espírito estende-se sobre o colchão e aconchega-se aos lençóis. O corpo acompanha-o e dá-lhe forma. Ergue-se uma mão, a minha, que alcança um livro. Na lombada diz: Livro do Desassossego, Fernando Pessoa. Que desassossego acompanha a noite que parece, estranhamente, tranquila por natureza? A noite que é a antítese do dia, da cinética buliciosa que move a roda dentada do mundo . Se a uma máquina não se lhe exige que pense mas que execute a sua função, assim o dia serve para transformar a humanidade numa espécie de máquina. Uma máquina de fazer dinheiro. Mas a noite é a suspensão de todas as cinéticas, de todas as mecânicas. A noite é a aproximação de todas as ausências no contacto do ser consigo próprio. E por isso a noite obriga a máquina a pensar, por ficar presa na sua roda dentada, sem movimento. A noite convida à leitura, por esta ser a fuga ao nosso próprio pensamento, para que o nosso pensamento se ponha em movimento a caminho de outro,  onde o horizonte é feito sem olhos que o vejam. Incomoda-nos pensar por nós próprios, no absurdo que é não saber nada, e não ter, por isso, nada com que pensar. Assim eu, não sabendo nada e não tendo nada com que pensar, a minha mão foi no seu instinto próprio revelar uma página do desassossego, que é meu, que é vosso, que é de todos: O desassossego maravilhoso que é viver.

A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espírito através da matéria, e, como é o espírito que viaja, é nele que se vive. Há, por isso, almas contemplativas que têm vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que têm vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tão cansado de um sonho como de um trabalho visível. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.
                Quem está ao canto da sala dança com todos os dançarinos. Vê tudo, e, porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em súmula e ultimidade, é uma sensação nossa, tanto vale o contacto com um corpo como a visão dele, ou, até, a sua simples recordação. Danço, pois, quando vejo dançar. Digo, como o poeta inglês, narrando que contemplava, deitado na erva ao longe, três ceifeiros: “Um quarto está ceifando, e esse sou eu.” 

- Bernardo Soares


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