O corpo no cabide, Revista Inútil

O corpo no cabide

«Por vezes, ao acordar, sinto que a minha alma não cabe no corpo.»

Ela disse isto e depois calou-se, como se fosse ficar assim para sempre, como se tivesse esgotado tudo o que lhe restava para dizer até ao fim da vida. A frase, lançada com frieza no silêncio húmido do quarto, produziu uma pequena escuridão no espírito do homem.

«O que significa isso?»

A mulher olhou-o com uma espécie de estranhamento. Ele tentou soltar-se daquele olhar. Cobriu o tronco com o lençol. «Fiz alguma coisa que não devia?». Momentos antes havia-a abraçado pelas costas, progredindo com cuidado, com vagar, como quem atravessa às escuras uma cidade estranha. Incomodara-o que ela não gemesse alto. Queria ouvi-la a gemer, gritar. Ela continuou:

«Sinto que o corpo me aperta a alma, sei lá, que está curto, entendes?, como se tivesse adormecido com quinze anos e acordasse aos vinte  e cinco ainda com a mesma roupa. Sinto uma grande vontade de despir este corpo e ficar com a alma exposta, inteiramente nua.»

Trazia as unhas pintadas de negro. Ele reparou nisso vagamente inquieto. Lembrou-se de quando era criança e acordava no beliche superior do seu quarto, num comboio parado algures no interior de África, e ouvia lá fora, na escuridão à solta os pequenos ruídos do mato. Naquelas unhas pintadas de negro havia alguma coisa de ameaça – como nos ruídos do mato. O corpo da mulher era longo e liso, semelhante ao de um peixe, e de alguma forma igualmente impossível de aprisionar. Uma luz escura fluía dela como de um rio ao entardecer. O homem saltou da cama. O que podia dizer?

«Não compreendo as mulheres.»

Podia ter dito isto, alguma coisa do género, mas seria demasiado óbvio. Sentou-se em silêncio, no canto mais afastado do quarto, e acendeu um cigarro. Ela sorriu:

«É assim tão difícil entender?»

Podia ter dito, «os homens nunca entendem nada», mas seria inútil. As mulheres, na verdade, não precisam que os homens as compreendam. Basta que as ouçam. Ele sabia disso e assim continuou calado. Ela via-o, ali, no canto do quarto, meio encoberto pelo fumo do cigarro.

«Às vezes gostaria de poder despir este corpo. Despia-o e pendurava-a num cabide, no armário, ao lado dos vestidos que nunca mais voltarei a usar. Cuidaria dele nos domingos de chuva, de manhã, quando me afligissem as saudades destes dias. Ou talvez, simplesmente, o esquecesse. Farias amor com a minha alma nua?»

Aborrecia-o que ela não tivesse gritado. A mulher possuía um corpo intenso e vibrante (sim, havia vibrado nos seus braços), mas ao mesmo tempo parecia tão distante dele quanto um navio pousado na linha do horizonte. Não um navio qualquer: ele via-a com um transatlântico, uma vasta cidade de espelhos e cristais, com as suas festas junto à piscina, os jantares no grande salão, os bailes de máscaras, os inúmeros assombros nos quais nunca conseguiria penetrar. Pensar nisto deu-lhe vontade de chorar. Esfregou os olhos. Murmurou:

«Vou deixar de fumar.»

Não viajaria mais num transatlântico. Sentia-se em relação a ela com um pequeno peixe-pescador, um peixe dos abismos oceânicos, cujo macho se une à fêmea com tal paixão que chega a prescindir do próprio corpo. Também ele dependia inteiramente dela. Ela, no entanto, só o achava interessante enquanto o tinha na cama. Pensou tudo isto no breve espaço que levou a acender outro cigarro. Deixaria de fumar no primeiro dia do ano. Não voltaria a fumar.

«Responde. Farias amor com a minha alma nua?»

Nos últimos meses aguardara num secreto terror por aquela pergunta. Ou melhor, se quisermos ser precisos, por uma pergunta naquele tom de voz, não exactamente com tais e tais palavras. O tom de voz é quase sempre mais importante do que a mensagem. O homem chamava-lhe – refiro-me à pergunta – o enigma final. A Esfinge afiava os dentes, «decifra-me ou devora-me», e o que podia ele responder-lhe?

«O teu corpo agrada-me muito.»

Seria certamente a resposta errada. Qualquer resposta seria a resposta errada. Ele envelhecera. Estava quase sábio. Compreendeu que faria melhor se continuasse calado. Preferia fingir-se de morto, como alguns pequenos animais quando o predador os alcança. Há sempre a possibilidade de que o predador apenas se pretenda divertir com a perseguição. Talvez ela não quisesse realmente a sua carne.

«Estou a assustar-te? Quero que te assustes, sim, gosto de te ver assustado. Agora responde: entre o meu corpo e a minha alma o que tu escolhias?»

Ele esmagou o cigarro no cinzeiro.

«Porque pintaste as unhas de negro?»

As lagartixas largam a cauda quando se sentem cercadas e a fuga não parece possível. Pode ser que o predador se interesse pela cauda, a qual, durante alguns segundos, se sacode e salta como uma coisa viva e autónoma, e então consigam esgueirar-se. Ele largou a pergunta como uma lagartixa largaria a cauda. A mulher, porém, não se deixou iludir:

«Responde!»

O homem compreendeu que estava perdido. Nos últimos meses tentara preparar-se para aquele instante. Agora, porém, agora que tudo ia realmente acontecer, sabia que não estava preparado. Nunca estaria. Respirou fundo. Precisava de um cigarro. O seu último cigarro. Não esperaria pelo primeiro dia do ano. Fez um esforço para pensar no mar. Num mar calmo, azul turquesa, sob um grande sol de verão. A imagem do mar costumava pacificá-lo. O que diria o peixe-pescador à respectiva fêmea se esta decidisse livrar-se dele? Podia dizer-lhe que a amava, que já não conseguiria viver sozinho; de facto, coitado, não conseguiria. A boca do peixe-pescador funde-se à pele que recobre a fêmea; os sistemas vasculares do macho e da fêmea unem-se e o minúsculo macho passa a depender inteiramente do sange da fêmea para a sua sobrevivência. Transforma-se, digamos assim, num pénis portátil.

O homem sorriu com tristeza; logo a seguir, porém, pensou que um sorriso triste era uma contradição nos termos e esforçou-se por sorrir com ironia. O novo sorriso ficava-lhe mal, como alguém que sobre uma camisa curta, de corte clássico, colocasse uma gravata de fantasia com desenhos do Rato Mickey apunhalando a Minie (algo assim).

«Foi um equívoco, sabias?»

Ele, o pénis portátil, fora com ela para a cama pela primeira vez, há oito meses, graças a um equívoco feliz (poderia dizer, agora, que fora um equívoco feliz?). Não que não a desejasse; desejava-a, sim; mais do que isso, amava-a com uma paixão sem esperança. Uma noite encontro-a num congresso e levou-a a jantar. Enquanto consultava o menu, exausto, distraído, a pergunta saiu-lhe dos lábios:

«E depois disto, o que queres fazer? Vamos para a cama?»

Pretendia dizer, é claro, vamos dormir, cada qual na sua cama. Ela não lhe deu, contudo, tempo para se explicar. Olhou-o de frente, com os mesmo olhos cruéis com que o olhava agora:

«Vamos.»

Ele enfiou a cabeça no menu para esconder a perturbação. O empregado afastou-se muito direito, muito depressa, e explodiu às gargalhadas na cozinha (é assim, pelo menos, que imagina a cena). Foram para o quarto dela. Havia uma desordem de roupas sobre a cama. A mulher deixou que o vestido lhe deslizasse até aos pés e ficou nua diante dele, bela como um abismo, a pele negra reluzindo na penumbra.

«Trazias o teu vestido verde, Lembras-te?»

Ela não se queria lembrar. Vivia o presente e esquecia o passado. Fazia alarde disso. Atirou o lençol para longe e de novo o esplendor daquele corpo jovem o aterrorizou. A fêmea do louva-a-deus assassina o macho por luxúria. Um louva-a-deus macho ao ser decapitado executa melhor e com mais vagar os movimentos espasmódicos próprios da cópula. A fêmea corta a cabeça ao macho e devora-lhe as entranhas enquanto este se agita ansiosamente para atingir o orgasmo. Em algumas espécies, com a excitação, a fêmea muda de cor e brilha.

A mulher levantou-se e avançou lentamente em direcção a ele. Uma escuridade acessa. Bela com um abismo. Bela como louva-a-deus fêmea antes da cópula.

- texto de José Eduardo Agualusa, Revista Inútil



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