O calcetar de uma rua


Havia uma rua na cidade por onde pouca gente passava. De facto, pouca gente a conhecia e pouca gente a queria conhecer. Aliás, eu não conheço pessoalmente ninguém que a conheça ou que a quisesse conhecer. No entanto, ela existia. Desde os tempos que essa rua nasceu até aos tempos de hoje, pouco da sua vida mudou. Há já largos anos, houve um calceteiro embriagado que lhe disse, pela primeira vez, estas palavras:

- Nunca ninguém te há-de querer para nada. Tu não serves para nada.
           
E de facto, ninguém a queria para nada. Nunca ninguém a levou consigo para nenhum lado. Ela servia só de passagem para quem vinha da rua de cima para a rua de baixo. Nem o sem abrigo, que era seu vizinho, lhe dava qualquer tipo de atenção. Preferia antes ficar na esquina que dava para a praça porque era lá que as moedas caíam mais vezes. Apesar de cego, surdo e mudo, o soar da caridade era o único que ele ainda ouvia. Sabe-se lá bem como… Mas apesar de cego, surdo e mudo, conhecia melhor aquela rua que qualquer outra pessoa no mundo. No entanto, por se preocupar mais com as suas moedas, ignorava-a também.  O calceteiro, esse,  tão embriagado que era o seu olhar, nunca chegou a ver realmente o quanto bonita era a rua sobre a qual ele trabalhava. E por trabalhar nela todos os dias, era, de todos, aquele que mais a desprezava.
           
Ora a rua, apesar de ser apenas uma rua, também tinha os seus sentimentos. Afinal de contas, quem não os tem? E os sentimentos que ela tinha eram de uma amargura tão grande que se estendiam, justamente, da rua de cima até à rua de baixo. Sentia-se abandonada ali, sem amigos nem conhecidos. Sentia, e com razão, que não tinha ninguém que olhasse por ela, ou para ela sequer. E isso entristecia-a profundamente. Quando ela nasceu, pensava esperançosamente que o mundo a viria contemplar de quando em quando. Sonhava até que algum fotógrafo famoso lhe tirasse uma fotografia com uma daquelas máquinas cuja lente capta a beleza oculta das coisas. Ela desejava, pois, que alguém descobrisse nela a sua beleza oculta e que lhe mostrasse delicadamente:
            – Vês como és bonita?
           
Um dia aquela rua fartou-se. Da dor e do desprezo. Acima de tudo do desprezo. Porque a ideia do prazer já se tinha afastado de tal modo de si, que a dor era como que a única coisa capaz de despertar os seus sentidos. E, por isso mesmo, suportava-a. Mas o desprezo, esse, não conseguia suportar nem tão pouco habituar-se a ele. Por isso, houve um dia que aquela rua fartou-se e, num impulso inexplicável, foi-se embora. Foi-se embora seguindo o caminho da noite. «Se a noite se pode ir embora porque não eu também?» Este foi o seu último pensamento. Pelo menos, o último que me chegou ao conhecimento.
           
A maneira como acaba esta história é bastante curiosa, de tal forma que chega quase a parecer que foi inventada. Mas a verdade é que logo depois daquela noite, logo ao romper do dia, o calceteiro bêbado que há largos anos atrás batia com toda a sua força sobre aquela rua, para «fazê-la» porque sem ele aquela rua «não era nada», veio à sua procura. Mas quando chegou, a pensar que a rua ainda precisava de ser calcetada, mais uma vez, uma última vez, ela já não estava lá. Tinha-se ido embora: de mãos dadas com a noite.

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