Sentir a vida pela raiz dos sentidos



De um lado para o outro a agitação das pessoas fazia crer que aquela praia não era a simples praia a que estava destinada ser, mas sim outra coisa, outra invenção confusa a que o homem se fixa para dar espaço às suas memórias, à sua vida. As toalhas, espraiadas aqui e ali, pintavam uma nova paisagem sobre a areia fina que parecia servir o propósito duma tela onde um qualquer artista dá vida ao que é inerte. De todas as pessoas que estavam ali naquela praia e que se agitavam em conversas tão difusas quanto os seus pensamentos, havia uma pessoa que parecia estar ali um pouco à parte de todas: não só não tinha toalha onde pudesse ancorar o seu corpo, como também não tinha palavras com que pudesse romper com o seu próprio silêncio e assim participar em qualquer conversa, mais ou menos interessante. Essa pessoa era um jovem rapaz, alto e moreno, que estava ali pelo mesmo motivo desconhecido que todas as outras pessoas, no entanto, a sua presença ali parecia-lhe confusa, pois o silêncio que nele habitava não estava em sintonia com o imenso barulho corporalizado nas correrias, nos saltos, nos risos, nos gritos, e nos muitos outros sons audíveis que serviam apenas como orquestra de fundo duma sintonia incompreensível. Esse rapaz alto e moreno, ao ver-se confusamente ali inserido, não podia deixar de deambular dum lado para o outro como que à procura dum lugar que lhe fizesse mais sentido, dum lugar onde pudesse ancorar tranquilamente o seu corpo e com isso, também, os seus pensamentos. O sol estava um pouco mais baixo e perdido no horizonte que o costume para aquelas horas do dia, mas apesar daquela distância ele parecia observar, como ninguém, todos os passos deste jovem rapaz. Só as nuvens pareciam se intrometer, de tempos a tempos, entre os dois. 

– Ó João! O que tás para aí a fazer? Anda, vamos jogar às cartas!

Afinal, este jovem rapaz também tinha nome. Usemo-lo então daqui em diante… O João virou-se para quem o chamava e pensou: com que cartas posso eu jogar a minha vida? Ao olhar para trás, viu que aquele jogo não lhe daria para as mãos as cartas que ele precisava naquele momento. Então, ao sentir isso, inclinou a cabeça no sinal de recusa que todos nós conhecemos e seguiu em frente no seu caminho. Chegado à orla da praia onde o mar começa e acaba em cada bater de onda, o João sentiu que aquele era o lugar que ele precisava de encontrar para se encontrar a si próprio, na paz do seu silêncio. 
Ali, naquele lugar onde todos se sentem partir sem nunca chegar a partir realmente, o João experimentava a cada um momento um sentimento de ampla renovação. A água estava fria, é certo, mas sempre que ela vinha ao encontro dos seus pés acendia-se dentro do seu corpo um arrepio profundamente eletrizante, quase vertiginoso, que o despertava para a raiz dos seus próprios sentidos. E é curioso como foi precisamente nesse momento que ele estava mais sozinho, que mais pessoas reparavam nele e se interrogavam sobre a razão pela qual ele estava ali ancorado à beira do mar e o que lhe passava pela cabeça. Eu próprio não sei o que lhe passava pela cabeça porque o silêncio dele nunca me disse nada, nem nunca me deu nenhuma resposta. No entanto, a única coisa que eu sei é que foi ali, naquele momento, que o João estava realmente mais perto de si próprio, naquele único lugar capaz de unir a sua natureza à natureza do mundo. 


Comentários

  1. Há alguns meses encontrei os seu blog. Tomei a liberdade de ir lendo, de tempos a tempos, os seus pensamentos. Tem uma escrita maravilhosa, conjugada entre a simplicidade e o belo. Porque o belo nem sempre é um jogo de palavras complexas, mas sim um jogo complexo de palavras. Possuí igualmente um estilo próprio na escrita, embora que traços de Vergílio Ferreira, um dos meus autores preferidos.

    Cumprimentos,
    Daniela.

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