Afinal, já não sou um existencialista.
No outro dia descobri que,
afinal, já não sou um existencialista. E o mais surpreendente, pelo menos para
mim, foi que descobri isso enquanto subia as escadas do prédio da rua lá de baixo.
Ora, tinham-me chamado ao último andar do dito prédio para tratar de uns assuntos
cuja real natureza ou propósito nem eu próprio compreendia, muito embora
tivessem tudo a ver comigo. Pode parecer estranho, é verdade. Mas quantas
vezes isso não nos acontece? Recebemos uma carta em casa que nos obriga a ir a
um determinado lugar fazer algo ainda mais determinado mas que, surpresa das
surpresas, não compreendemos muito bem do que se trata embora saibamos que se
não formos lá, ninguém lá irá por nós e tão-pouco aceitariam lá outro sujeito
que não nós. Enfim, o que vale é que o prédio da rua lá de baixo é fácil de
reconhecer pois é o único que não tem
janelas. Basta-lhe uma porta para entrar. O arquitecto que projetou aquele belíssimo mas incompreensível monumento nunca assumiu a responsabilidade e, portanto, o
mistério da ausência de janelas num edifício tão alto nunca chegou a ser
apurado. Contudo, há quem diga (e não são poucos) que a lógica para tal coisa
era a de impedir que as pessoas se atirassem lá de cima. Sim, porque dos
prédios todos que existem na rua lá de baixo este é realmente o único do qual
dá vontade de saltar. E até mais do que uma vez. Mas bom, o que é certo é que
isso é apenas uma suposição feita entre a malta que vai falando aqui e acolá
sem nunca assumir, também, de forma oficial as suas próprias opiniões. Assim
que entrei no prédio ainda demorei algum tempo a aperceber-me que estava lá
dentro e que, ainda por cima, estava atolado de gente. No meio de tanta gente
era quase impossível de saber bem onde estava e até mesmo quem eu era ali. Aquela
multidão de gente tinha-me confundido o discernimento entre aquilo que eu era e
o que os outros eram. Por momentos que se pareceram horas ou dias, fiquei sem
saber onde eu começava e onde acabava. Daí que não me podia mexer. Sim, como me
poderia eu mexer se não sabia onde começava e acabava o meu pé? E como poderia
eu afastar a multidão da minha frente se eu próprio não sabia onde estavam as
minhas mãos: se em mim ou naquelas outras pessoas que eu via ali mais à frente?
Dada a minha confusão, ainda estive quase para perguntar a alguém onde
começavam e acabavam os meus pés e se algum deles tinha as minhas mãos. Tudo
isto pode parecer inverosímil, é certo, mas também não é menos verdade que não
há nada no mundo onde esteja demonstrado de uma forma clara e irrefutável: “é
aqui que começam e acabam os teus pés e aqui estão as tuas mãos”. Tudo isto, esta
representação que a mente faz do nosso corpo, é objeto de investigações
notáveis na área das neurociências e tudo quanto sabemos é que a nossa
verdadeira consistência não é mais sólida do que a do cérebro. Portanto, ali
estava eu sem consistência nem identidade nenhuma e preso a um lugar indeterminado
até um tempo ainda mais indeterminado. A figura da multidão parecia-me confusa
e embaciada. Talvez pelo calor abafado que se fazia sentir e que me atordoava
os sentidos. De facto, foi apenas quando comecei a retomar o controlo sobre os
meus sentidos é que fui capaz de distinguir as pessoas que me rodeavam. Com alguma surpresa, acabei por notar que
dentro daquela multidão havia pessoas de todos os tipos e feitios. Sim, podem
imaginar à vontade porque havia lá de tudo. O que não havia era um elevador. E
sendo assim, parece que toda a gente estava condenada a esperar pela sua vez
para começar a subir aquelas escadas. À medida que ia recuperando o controlo
dos meus sentidos e que ia começando a distinguir as outras pessoas, dei-me
conta que afinal eu estava ali também a poucos metros do primeiro degrau e
pude, então, descobrir e sentir onde começavam e acabavam os meus pés e aonde
estavam as minhas mãos. Com algum alívio por me ter reencontrado a mim próprio,
comecei a sorrir que nem um parvo e fiz algum esforço para não confessar às
pessoas que me rodeavam de que tinha acabado de descobrir onde começavam e
acabavam os meus pés e aonde estavam as minhas mãos. Aliás, quando vi um
sujeito a apoiar-se no corrimão estive quase para gritar: “ah, afinal essa mão
é tua!” Mas depois acabei por ver que essa afirmação poderia perturbá-lo e
guardei-a só para mim. Enfim, ali estava eu de volta a mim próprio, naquele
prédio sem janelas e com aqueles degraus todos a subir. Ainda antes de iniciar
a minha marcha, eu ainda perguntei a um homenzito que estava ao meu lado e que
parecia saber mais do que eu se ele porventura sabia do que se tratava tudo
aquilo. Ele estranhou a pergunta e não me respondeu sequer. Lá prosseguiu o seu
caminho, degrau a degrau, parando só de vez em quando para retomar o fôlego. Em
contrapartida, uma pessoa que estava ao meu lado, ao ouvir a minha pergunta
disse-me: nós estamos aqui para subir. E bom, tendo em conta que toda a gente
que me rodeava estava ali para subir e que eu também tinha ali assuntos
inadiáveis para tratar, lá me resolvi também a subir. Pois assim que retomei
consciência do meu corpo, estava a tornar-se cada vez mais insuportável
permanecer no mesmo sítio ao lado de toda aquela gente que não conhecia de lado
nenhum. De facto, uma das minhas esperanças era de que ao subir alguns degraus
ainda encontrasse algumas pessoas conhecidas com as quais pudesse conversar e
aliviar um pouco o peso daquela subida. E felizmente assim foi. Logo uns
degraus mais à frente fui encontrando pessoas que conhecia de algum lado. Uns
da rua lá de cima, outros da rua do lado e ainda outros de lugares mais
distantes onde as ruas são mais largas que os horizontes das estradas. Até
cheguei a confundir pessoas desconhecidas por conhecidas, dada a simpatia e familiaridade
com que me tratavam. O único incómodo foi de ter avistado também pessoas por quem
não nutria grande simpatia mas que, sorte a minha, estavam do outro lado da
escada. De vez em quando, ia encontrando alguns casais aos beijos e abraços e
que pareciam se ter conhecido ali, naquelas escadas daquele prédio sem janelas.
Para esses, o tempo parecia ter parado eternamente num só degrau. Eu acredito
que se ninguém os empurrasse, eles teriam ficado ali para sempre. Infelizmente,
também vi alguns a queixarem-se repetidamente e a tornarem a subida de outros
mais difícil. Para além disso, ainda houve quem agradecesse o facto daquele prédio
não ter janelas porque se assim não fosse, já não estariam ali. Em
contrapartida, havia também outros que clamavam desesperadamente por uma janela
e outros que clamavam por ela em silêncio. Foi aí que alguém começou a discursar que a
culpa era sempre do arquitecto, para o bem e para o mal. Pela forma como
falava, também ele deveria ser um arquitecto ou, pelo menos, um estudante de
arquitectura pois a História da Arquitectura e as principais obras dos
arquitectos mais influentes do mundo ainda lhe estavam vivos na memória. Não
foram poucos os exemplos que ele deu em relação às obras mais belas e
incompreendidas do mundo. Não foram raras as analogias e metáforas empregues
para tentar trazer alguma luz naquele prédio tão escuro. Houve que o mandasse
calar e houve quem o ouvisse. E ainda houve quem nem desse por ele e que subisse
na mesma as escadas. Quanto a mim, eu aproveitava cada instante para apreciar o
que se passava à minha volta de forma a não perder nada daquele espectáculo
onde estava inserido e do qual não podia fugir. De facto, foi aí que me
apercebi que afinal já não era um existencialista porque já não estava minimamente
interessado em saber quem eu era ali nem que escadas eram aquelas. Nem tão
pouco me interessava o que me esperava lá em cima. Era ali, no meio, onde me
encontrava que o espectáculo do mundo acontecia e era nele que eu pensava e
participava.
Descobri que depois de tantos anos...nao consigo deixar de te amar...vivi este amor platonico em silencio mas que vou guarda lo para sempre comigo...pois faz parte da minha existencia assim como tu mesmo nao sabendo
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