Fugir à crise e o regresso à realidade


 Ao fechar a porta viu-se, de repente, sozinho no quarto. O dia tinha sido longo, demoradamente longo, desde o início até ao fim. As reuniões, umas atrás das outras, consecutivamente repetitivas tanto na sua natureza como nos seus resultados, tinham-no fatigado até ao ponto máximo da extenuação. Ele sentia, como toda a gente da empresa, que aquelas reuniões não serviam rigorosamente para nada, pois nada iria realmente mudar: nenhuma estratégia, fosse ela qual fosse, poderia agora evitar aquilo que já era há muito inevitável – a falência. Aquelas reuniões serviam, como muitas outras, apenas e só para entreter os espíritos e embriagá-los numa sensação de utilidade de que as pessoas precisam para justificar o seu quotidiano. 
Não era propriamente isto que o Luís tinha em mente quando decidiu sair de Portugal para fugir à crise económica. Ele pensava que fugir aos problemas era a mesma coisa que solucioná-los e eis que, agora, o problema o tinha apanhado de novo. Ao fechar a porta do quarto, sentiu naquele momento uma mistura de sentimentos em tudo contraditórios: sentia no lugar mais íntimo da sua alma um conforto angustiante. Sentia um doce e belo conforto por chegar finalmente a casa depois daquele dia longo e fatigante, mas ao mesmo tempo, sentia também uma angústia terrível e profunda por sentir que, chegado ali, já não tinha mais para onde fugir. As quatro arestas do seu quarto definiam agora não só os limites daquele quarto mas também os limites do Luis, como se ele próprio já não pudesse ser mais do que aquilo, mais do que aquela realidade nua e fria onde uma pessoa deixa de ser o que é. O terrível peso da derrota perseguia-o onde quer que fosse, como se ela própria fosse uma coisa inevitável na sua vida. 
Despiu-se lentamente e atirou aleatoriamente cada peça de roupa pelo quarto. O Luís sentia que naquele momento devia oferecer às roupas a liberdade que ele próprio não tinha para si. Depois dum longo momento de suspensão a olhar para a cama sem realmente a ver, decidiu deitar-se. Era uma pequena cama que tinha como maior defeito o facto de oscilar facilmente durante a noite e lhe perturbar, assim, frequentemente o sono. Mas hoje a cama mostrava ser mais segura do que era na verdade, e o largo corpo do Luis deitado sobre ela assemelhava-se a um daqueles grandes navios que vemos sempre muito bem atracados em qualquer porto, mais não seja pelo simples peso da sua presença.
O silêncio era duro e pesado e ele precisava de arranjar algumas palavras com que se distrair. Acendeu uma vela ao lado da mesa-de-cabeceira, apagou as luzes e pegou num livro. Era um romance fácil, de palavras fáceis, onde tudo parecia ser tão fácil quanto a leitura. Mas quanto mais ele avançava na leitura, mais ele se dava conta que a vida não era nada do que aquilo que ele lia, que a vida afinal era na verdade um longo tear de palavras difíceis e complexas, incompreensíveis, muitas vezes desconexas, atiradas aqui e ali, no simples acaso, sem sentido aparente e que o único sentido que elas têm é o sentido que nós lhes damos. Qual era o sentido de ele estar ali sozinho, longe da família e dos amigos, e de ter abdicado de todo o conforto, do real e verdadeiro conforto por uma solução que afinal não veio solucionar nada? Qual era o sentido? No romance as coisas decorriam duma forma simples e previsível, numa cadeia de acontecimentos que faziam todo o sentido porque tinham sido criados por um escritor que queria inventar um sentido para as coisas e, por isso, alterava até os acontecimentos mais simples da vida, os mais humanos, para que a vida lida fosse melhor que a outra, a única, a verdadeira, aquela que escapa a qualquer leitura, pois a vida vivida requer muito mais que os olhos da imaginação. 
Chegou um momento em que o Luís se fartou. Já não podia mais com aquilo, com toda aquela artificialidade. Se inicialmente queria fugir à realidade, as palavras que ecoavam daquele romance falso atormentavam-no ainda mais e, por isso, sentia agora que devia voltar de novo à realidade, por mais fria que ela pudesse ser. A vela que iluminava solitariamente a penumbra daquele quarto aguardava pelo seu leve sopro para se extinguir em paz, pois aceitar o destino daquela noite representava para ambos o primeiro sinal de esperança a que nos agarramos quando dizemos que amanhã haverá de ser um outro dia.

Comentários

  1. ' pois a vida vivida requer muito mais que os olhos da imaginação. '
    Adorei e vou levar comigo!!

    E amanhã assim será... ' Haverá de ser um outro dia. '

    :)

    Parabéns!

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  2. Fico muito feliz por sentir que este texto disse alguma coisa a alguém ;)

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  3. É um maravilhoso blog, o seu. Sempre que posso dou uma espreitadela ;) Bem interessante...

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