Uma questão de liberdade, Erasmus

          O homem é o único animal que depois de nascer tem que inventar a sua vida: ele nasce completamente nu, sem atributos naturais que lhe indiquem concretamente a razão pela qual nasceu, e, portanto, abandonado pura e simplesmente à sua razão, ele tem que descobrir através dela um determinado propósito e sentido para a sua vida. Um homem que viva apenas segundo a lei dos animais sente cair sobre si um absurdo maior do que o próprio sentido absurdo da vida. Portanto, se para alguma coisa o homem nasceu foi para se inventar a si próprio. A essa invenção de si próprio, chamamos projecto de vida. A nossa vida é, assim, um projecto que se vai desenhando livremente sobre uma folha de papel branca que tem os seus próprios limites mas que, dentro dela, tudo é ainda sempre possível e indeterminado. À medida que desenhamos o que somos, vamos vendo que há traços que já não fazem sentido e que já não se ajustam ao que pretendemos ser. A maior dificuldade na invenção do ser humano é a sua incapacidade, por vezes, de se livrar destes traços incómodos que já não fazem sentido dentro do projecto actual. É aqui que Sartre nos vem libertar e, ao mesmo tempo, condenar à liberdade. O texto que aqui me proponho escrever não tem como objectivo expor toda a teoria de Sartre: não só perderia a grande parte dos leitores pelo caminho assim como acabaria por fugir do meu. O que me proponho fazer aqui é expor duma forma simples o ponto de vista de Sartre e transpô-lo para a minha experiência de Erasmus enquanto momento de ruptura com o meu projecto inicial.
Segundo Sartre, esta temporalidade a que pertencemos não é possível ser encarada a partir das suas três dimensões: o passado, o presente e o futuro. “O único método possível para estudar a temporalidade é abordá-la como uma totalidade que domina as suas estruturas secundárias e que lhes dá um sentido.” Esta totalidade é a nossa consciência e Sartre refere-se a ela como o Para-si para a distinguir do Em-si. Esta distinção serve para ilustrar a natureza da consciência que não é nada mais que uma simples projecção de nós próprios, de isto que nós somos enquanto coisas que existem. Daí que, para Sartre, a existência precede a essência. Isto é, antes de sermos capazes de definir em nós uma essência, já nós existíamos segundo o modo de ser da coisa, do Em-si. Esta observação é pertinente pois, de facto, não consigo responder para mim mesmo a seguinte pergunta: a partir de quando comecei a ser?  Antes de me sentir ser eu já existia mas desconhecia a minha própria essência, não tinha consciência de mim próprio, desta projecção de mim a mim mesmo. E depois, quando coloco uma nova pergunta, a tal que se segue: então afinal o que sou? Sou obrigado a constatar que o que sou é como que um nada que se tenta passar por uma coisa, e daí que aquilo que sou não é essa coisa que penso ser mas a projecção dessa coisa que eu já era ainda antes de me sentir ser. Contrariamente ao Em-si, à coisa, àquilo que é, o Para-si não pode ser definido antes de existir visto que ele se projecta, se escolhe e nega sempre o que ele é para surgir no ser que afirma. O Para-si nunca é a consequência de causas antecedentes, mas de escolhas que fez no momento em que outras possibilidades se ofereciam. Assim sendo, o sentido daquilo que me tornei nunca é definitivo: enquanto me encontrar neste mundo eu tenho a livre obrigatoriedade de me escolher. Enquanto o Para-si não for abolido na morte, uma nova escolha pode sempre reorientar o sentido daquilo que ele é. O sentido aqui é sinónimo de projecto: desta projecção de nós próprios orientada para dar um rumo à nossa existência. E este projecto não tem, portanto, nada de definitivo. Ele é perpetuamente modificável. O Para-si pode a todo o momento modificar as escolhas do que ele é, basta  para isso que escolha um outro projecto e que ele negue o que foi através do instante que cria uma nova temporalização. O Para-si é uma temporalidade absolutamente livre, isto é, uma temporalidade onde tudo a todo o momento é possível, uma liberdade projectada e assombrada pelo espectro do instante. Esta liberdade conduz Sartre a defender que o passado não é determinado: o homem pode escolher o seu passado, pois ele escolhe e constrói o seu passado em função daquilo que ele projecta ser. Ele não reinventa o seu passado, mas ele escolhe guardar deste os acontecimentos em função daquilo que ele quer ser. Um tal conhecimento não é de todo apaziguador: qualquer que seja o meu passado eu sou livre e posso mudar radicalmente o projecto através de um novo acto, pois ninguém é definitivamente o que quer que seja. Esta liberdade é angustiante na medida em que a consciência aspira a viver segundo o modo do Em-si, da essência uma vez por todas estabelecida. Cada consciência sabe, angustiadamente, que um acto é sempre possível e necessariamente possível dentro do qual ela deverá se escolher. A angústia é um medo de si próprio, o medo da própria liberdade, visto que afinal não somos livres de não sermos livres. A consciência nega ao mesmo tempo que deseja a liberdade. É portanto compreensível que, a consciência angustiada pela sua própria liberdade, se tende a assegurar interpretando-se sob a forma do Em-si e que faça tudo para se esquecer, por vezes, que é livre.
Agora que sabemos qual é a posição de Sartre sobre a liberdade e de que forma inventamos um projecto de vida à medida que nos escolhemos em cada situação, é chegado o momento de reflectir em que medida a experiência Erasmus pode mudar radicalmente o sentido de uma vida, de um projecto, de um Eu. Gaston Bachelard diz que “todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços onde sofremos e também obtivemos prazer a partir da solidão, onde desejámos a solidão, onde comprometemos a solidão são em nós inapagáveis (…) os espaços de solidão são constitutivos”. Portanto, chegamos a um pequeno quarto parisiense longe de todo o mundo que conhecíamos e mesmo se era o nosso sonho fazer um Erasmus em Paris, não podemos esquecer esta realidade: durante um ano inteiro vamos ficar neste pequeno quarto, abandonado a si próprio. E é precisamente neste abandono inicial que sentimos o peso negativo da liberdade a que se refere Sartre: a constatação de que afinal a vida é mesmo só nossa, de mais ninguém. Mas o peso associa-se sempre a um contraposto de leveza interagindo sobre a mesma situação. O romance A Insustentável leveza do ser de Milan Kundera é um livro que explora muito bem esta dicotomia entre o peso e a leveza do nosso ser. Portanto, o peso da liberdade, isto é, o peso de estar sozinho na vida (que não é o mesmo que estar sozinho no mundo), é contraposto e balanceado pela leveza da liberdade, isto é, pela oportunidade que nós temos de negar este peso no encontro com as mil possibilidades que a vida tem. E é aqui, precisamente aqui, que nos surge a constatação de que apesar de estarmos sozinhos na vida, de sermos uma entidade singular, a vida em si é múltipla cabendo apenas a nós de entrarmos, ou não, na sua multiplicidade. O Erasmus começa por ser uma experiência de encontro consigo mesmo e depois alarga-se e expande-se no encontro com os outros. E durante todo este processo vamos nos reinventando à medida que nos escolhemos: num lugar onde o nosso passado é desconhecido ou até mesmo aquele que é conhecido tem pouco valor para a facticidade do presente, estamos constantemente a reescrever uma nova história de nós próprios, a criar um novo passado que irá dar outro sentido ao futuro. Quando damos por nós, num desses dias em que nos olhamos com maior atenção ao espelho, constatamos que a imagem que nela surge nos parece ironicamente estranha, e até nos perguntamos: “será que sou mesmo eu que estou aqui?” E a resposta é que sim, somos mesmo nós, a única diferença é que estamos a viver outra vida segundo outro projecto.
A experiência Erasmus tem dois momentos: o de partida e o de regresso. Na partida sabemos bem quem vai mas não sabemos bem o que nos espera, e no regresso sabemos bem o que nos espera mas já não sabemos bem quem volta. E é aqui, outra vez, que teremos que nos escolher.


- Texto publicado na Revista Desumbiga da Faculdade de Medicina de Lisboa, Dezembro 2012

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