O erro de Fernando Pessoa


Hoje parece-me que tive um momento de clareza à hora do jantar. A refeição estava concluída e eu preparava-me para me levantar da mesa quando a minha mãe fez referência ao tempo em que eu e o meu irmão competíamos um com o outro para sairmos rapidamente da mesa a fim de nos apoderarmos do comando da televisão. As regras e os detalhes que implicavam essa dita competição não é para aqui chamada, pois são vivências pessoais e familiares, no entanto, cabe aqui dizer que a minha mãe fez alusão a esses tempos elogiando-os da seguinte forma:

             – Belos tempos em que não se vivia para o pensamento. Vivia-se apenas para ganhar o comando da televisão.

A minha mãe fez essa observação para sublinhar o quanto a vida é alegre e bela quando não se pensa nela, quando nos deixamos apenas fluir no próprio fluxo das coisas e do mundo. Para além disso, o tom de voz da minha mãe também deixou transparecer um certo saudosismo e melancolia por esse belo tempo onde a vida decorria de forma energética e sem grandes preocupações. Nisto, era quase inevitável que a minha primeira reação fosse a de concordar com a minha mãe. Afinal de contas, como poderia eu não concordar que fui uma criança feliz por ser precisamente despreocupado e que a vida, naquele tempo, parecia fazer mais sentido porque o sentido que a regia advinha dela própria e não de mim próprio no mundo?  Mas, ao mesmo tempo, como poderia eu concordar que aquele tempo poderia ser o mais belo de todos se eu não usufruía ainda de todas as ferramentas necessárias para edificar a minha Razão? Ou seja, como poderia eu concordar passivamente que a vida naquela altura era melhor se eu ainda não tinha desenvolvido todas as minhas capacidades cognitivas? Se eu concordasse com a minha mãe e afirmasse que ser criança é melhor que ser adulto, então eu estaria a menosprezar o valor da Razão e da luta pela nossa autonomia de pensar (n)o mundo.

Eu não podia fazer isso. Eu não podia deixar que a minha Razão fosse vencida por uma versão mais incompleta de mim próprio. Contudo, eu também não podia deixar de reconhecer o sentido da frase do Fernando Pessoa que diz que "pensar incomoda tanto como andar à chuva". Muito embora saiba que a poesia é a dialética da alma, ela não é propriamente a dialética da verdade ou da Razão. Quanta beleza não pode haver num poema não obstante, muitas vezes, o seu engano?  A poesia faz falta à vida porque a vida é, em si, poética e o destino humano que a canta é trágico. Portanto, não será de admirar que a poesia não pode ser vista como um caminho que nos conduz à verdade, mas antes um caminho que nos leva ao encontro com aquilo que somos ou nos sentimos ser. Ora, a frase do Fernando Pessoa parece estar certa porque o nosso caro poeta apenas quis refletir um estado de espírito utilizando para isso a dialética da alma. Sendo assim, a frase parece estar certa e parece conduzir-nos à verdade porque nós sentimos que ela corresponde a um estado do espírito facilmente reconhecível pela nossa alma. Contudo, reparem como a frase deixa de fazer qualquer sentido quando lhe acrescentamos apenas uma palavra:

            Pensar bem incomoda tanto como andar à chuva.

Ora aqui está, a diferença entre nos exprimirmos através da dialética da alma ou a dialética da Razão. A alma gosta de sentir e exprimir exatamente o que sente.  A Razão não funciona assim. A Razão gosta de pensar bem e de se exprimir de acordo com a verdade. E  por isso mesmo é que não conseguimos convencer a alma com a Razão. No entanto, interpretando a frase modificada do Fernando Pessoa à luz da Razão facilmente podemos constatar que pensar bem não incomoda nada. Muito antes pelo contrário: a Razão gosta de ter razão e sente um enorme prazer em estar de acordo ou de se aproximar da verdade. As descobertas científicas são a prova disso mesmo. Não há nada que dê maior prazer a um ser humano do que sentir que a sua Razão alargou o nosso conhecimento sobre o mundo.
            
Na verdade, pensar só incomoda quando não estamos a pensar bem. E é precisamente por isso que éramos mais felizes quando éramos crianças:
            
Não porque a vida era melhor naquela época mas tão-somente porque naquele tempo e naquele contexto, estávamos a pensar bem dentro dos limites da nossa Razão.

Se por algum motivo nos incomodar pensar, é porque não estamos a pensar bem. 

Comentários

  1. Pensaste bem, pois se assim não tivesses pensado não terias produzido este belíssimo texto. É bom pensar com a alma, mas só e quando esta nos move para o caminho da positividade.

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  2. "Morrerás em breve. É incontestável. E quanta verdade morrerá contigo sem saberes que a sabias. Só por não teres tido a sorte de num simples encontro ou encontrão ta fazerem vir ao de cima.", Vergílio Ferreira, Pensar.

    Ainda bem que tiveste um momento de Clareza ou, como diz VF, um "momento privilegiado" à hora do jantar!

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