A morte de Saramago

Acordar cedo mas tarde. Cedo porque o meu corpo assim o assinala. Tarde porque os ponteiros do relógio não se movem ao ritmo do meu corpo. E ao acordar, por mais cedo que fosse, já tarde se fazia. E depois ao levantar a esperança de um recomeço que um duche quente assinala. Este é o momento em que a água se escoa pelo corpo arrastando consigo o sono, ou pelo menos parte dele. E depois ali, logo ali, a toalha. E no seu alcance, um breve conforto, num encontro feliz de intimidade, o último, antes de se iniciar o recomeço de um novo dia.


Nenhum dia é igual ao outro. Mas há dias que são banais. Os dias banais são aqueles que, apesar de diferentes, encaixam-se dentro de um determinado padrão. Um dia não-banal é aquele dia que se destaca do padrão. Nalguns casos, chega a quebrar o padrão e estabelecer um novo. Noutros casos, é apenas um azulejo diferente colocado ali no interior de um mosaico.

Hoje morreu o escritor José Saramago. E a morte por si é uma coisa banal embora custe a acreditar que o seja. Todos os dias morrem pessoas e estranho seria se tal não acontecesse. Na verdade, posso até dizer que se tal não acontecesse e que de repente ninguém morresse, a vida poderia tornar-se estranhamente assustadora. Porque, na verdade, faz tanto sentido as pessoas morrerem quanto viverem para sempre. A diferença está que, as pessoas já estão mais habituadas ao não-sentido da primeira certeza que ao não-sentido da segunda hipótese. Mas adiante... Aquilo que aqui quero dizer é que hoje a morte do José Saramago enquanto ser humano é uma coisa banal na medida em que essa é a realidade fria de todos os seres humanos e seres vivos em geral. Mas, por outro lado, a morte de José Saramago enquanto pessoa, é um acontecimento de luto que rompe com a banalidade. Porque a dimensão da pessoa extrapola a dimensão do ser humano. Isto de ser humano é uma dimensão confinada essencialmente ao biológico. E o biológico, de grosso modo, é banal. Tão banal que utilizamos ratos em laboratório para fazermos inferências acerca do funcionamento biológico do ser humano. Isto para não falar das muitas experiências que se realizam em seres vivos ainda mais inferiores, como por exemplo, bactérias. No entanto, não há animais de laboratório em que possamos estudar e com o qual possamos fazer inferências acerca do domínio da pessoa. Por isso, quando morre uma pessoa, esse acontecimento rompe com a banalidade e manifesta-se pelo luto. Depois claro, quanto maior o mediatismo da pessoa maior o rompimento com a banalidade quotidiana.

A morte de José Saramago, da sua pessoa enquanto escritor, levantará o saudosismo daqueles que o liam e daqueles que a partir de agora o irão começar a ler. Quanto a mim, a sua morte levou-me inconscientemente (talvez) à compra de um livro. Hoje passei pela Fnac e comprei o livro Um mundo sem Deus. Ensaios sobre o Ateísmo. de Michael Martin. Era um livro que já tinha dado uma vista de olhos noutra altura que tinha estado na Fnac mas que na altura hesitei em comprá-lo. Hoje comprei-o, a par com outro livro, Guerra e Paz de Lev Tolstói. Só quando cheguei a casa é que me dei conta da (in)feliz coincidência entre a morte de um escritor ateísta e o meu interesse por alargar os meus horizontes sobre aquilo que são os argumentos do ateísmo contra o teísmo.

O dia de hoje poderá revelar-se, ou não, um daqueles dias que impulsionou um novo padrão ou que reforçou o anterior. O tempo o dirá. Certamente que o dia de hoje colocou, ao menos, um azulejo diferente no interior do meu mosaico.

(até porque hoje assisti pela primeira vez à realização de angiografias e de angioplastias e isto para quem se interessa pela cardiologia como eu é um marco igualmente importante)


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