Coisas da Alma, um escrito antigo
Hoje invadiu-me a nostalgia pelos escritos antigos. No meio da minha pasta onde guardo aquilo que vou escrevendo, encontrei uma história inacabada que iniciei quando tinha uns 17 anos. Este texto foi um impulso que me deu para escrever naquele momento. E sendo de impulso, não durou muito. Mas partilho aqui um excerto deste escrito que, naquela altura, escrevi num impulso de necessidade e de descoberta.
Coisas da Alma
I
Abro a janela e entro em contacto com o mundo. A vida espera-me lá fora. O incandescente reflexo lapidado na calçada rústica da rua, as oscilações suavemente bruscas das folhas e a brisa que trespassa a minha face no momento em que abro esta janela e saio do meu recanto. Há um silêncio intrinsecamente escondido nesta harmonia natural. E pudera eu percebê-la... Serra da Arrábida, eu te vejo aqui diante de mim. Diante do meu olhar efemeramente fugaz apresentas-te solene, apaziguadora de todos os conflitos interiores, firme na voracidade de vida que se emana de ti. És mais do que a simples imagem que os meus olhos captam neste momento, és a perdura que se sobrepõe à minha passagem limitada pelos domínios da condição humana. Saber que existe em ti pedaço da minha génese, isso me acalma. Me refugia do conflito, da penumbra, da fugacidade escorrida pelos despojos da alma viva. Saber que sempre guardarás em ti o segredo de todas as passagens, tranquiliza-me (...) Rasgando as nuvens num gesto plenamente suave, tão suave que me arrepia o olhar, os pássaros vão para um não sei onde, talvez onde os sonhos não acabam antes de começar. Oiço o murmúrio de uma alma trazida pelo vento que me esbate no corpo com um ímpeto de raiva, de cólera, de presença. Ao fundo, Lisboa toda ela luzente. A ponte 25 de Abril... de longe consigo apreciar-te, diluir-me no teu corpo de ferro e sentir-te a alma retorcida das vozes, dos fragmentos, dos pensamentos e dos sonhos de todos esses que te imaginaram, tocaram e ergueram numa robusta frieza metálica para o início de um tempo que não acaba aqui. E o Cristo Rei? Quem abraças nos teus braços estendidos no céu? Quem olhas com o teu olhar fronte para o vazio dos lugares? Quantas vidas resguardaste da má fortuna? Sobre tantas já eu escrevi em colunas do meu jornal, em colunas da minha tristeza, em colunas da minha cúmplice solidariedade pelos quais só conheci na hora do obituário. Vivi escrevendo sobre os que te passaram ao lado ou que, talvez nada sendo tu és, vivi escrevendo simplesmente sobre os que imaginaram que existisse realmente um abraço na imagem erguida pelo cimento dos homens, Cristo Rei.
Toca o telemóvel. Inesperadamente é o director.
- Estou?
-Olha João estás a fazer alguma coisa neste momento?
-Não, eu não estou a fazer nada agora. Estava só a apreciar o... esqueça. Não estava a fazer nada mesmo.
-Pois… Já acabaste de escrever a tua crónica?
-Sim, acabei há pouco de a fazer. Quer que lho envie agora por e-mail?
-Não, não é preciso ser já agora. Até nem foi por isso que telefonei. Preciso que venhas cá à redacção.
-O quê? Então mas você disse que me dava três dias de folga!
-Sim, eu sei. Mas preciso mesmo que cá venhas.
-Então mas posso saber qual o motivo?
-João que eu saiba continuou a ser o director. Quero-te aqui o mais rápido possível. Deixa-te de perguntas e vem.
-Sim, desculpe mas é que não estava à espera. Vou já ai ter então.
II
A noite desce rapidamente acompanhada pelo silêncio das luzes solitárias. Esta “emergência” do director da Gazeta intriga-me na medida da minha irritação. Afinal, onde estão os meus dias de folga? Atravesso-te agora Ponte de 25 de Abril com a velocidade da minha pressa e olho-te pelo retrovisor Cristo Rei. Como me são insignificantes agora que vos sinto na minha fúria cega, no meu sentimento de obrigação, no meu ter que comparecer face ao meu dever. Vejo-te Belém, berço dos nossos sonhos, mergulhada nas luzes cintilantes e crepusculares de uma noite que se principia nos uivos dos lobos que no alto de um planalto desconhecido admiram esta esplêndida e misteriosa lua cheia. Mas sigo a minha estrada, o meu dever.
Chego à sede do jornal. Ao lado da porta está o mendigo do costume. De meia-idade, cinquentão, de uma barba acizentada, de cabelos enegrecidos por esta vida de arrastamento, de um olhar escondido no negro dos dias mal passados, de uma roupa inteiramente gasta e suja pela podridão dos passeios. Encostado contra a parede áspera do edifício, resignado à sua pobre e mísera condição, as duas pernas esmorecidas pelas chagas do esquecimento estão estendidas dramaticamente ao longo do passeio numa submissão total face à sua tortura quotidiana, o braço esquerdo trá-lo encostado ao peito perturbado de ansiedades, medos e revoltas, e o outro braço, em jeito de habituação, estende-se, com a palma da mão virada para cima, até à entrada da porta num gesto de derradeira súplica.
Que infância tiveste tu homem cujo nome ninguém conhece? Há quantos anos não ouves pronunciar o teu nome? Ainda ecoas dentro de ti o teu nome? Ou ter-se-á tornado estranho ao teu próprio ser?
- Senhor...uma moedinha se faz favor. – Pede-me ele num tom de voz sem esperanças como que adivinhando a minha resposta.
- Não tenho. – Minto, sem o enganar claro, enquanto abro a porta apressadamente e o abandono na sua tristeza desconhecida.
Cheira-me a tabaco, o tal tabaco que insiste acompanhar a reflexão destes jornalistas de primeira. Não costumo me irritar com esta habitual praga de fumo instalada no hall de entrada do edifício, mas hoje, devido à minha irritabilidade, sinto em cada defeito um sentimento de repulsa que se amplia à escala máxima de um telescópio. Este hall de entrada costuma ser o refúgio para as conversas de recreio. As conversas de pares que envolvem os segredinhos atrás da orelha, os sonhos e os pesadelos, as ambições e as desilusões, as esposas e os maridos, sem esquecer claro, os filhos, e, inevitavelmente, os amantes. Tanta coisa se diz entre o acender e o apagar do cigarro. Penetro o Hall de entrada e encontro-me com o cruzamento de corredores, cada um dá para uma secção diferente: redacção, impressão, imagem e marketing. Escolho o corredor que dá para a redacção. Com um passo apressado deslizo por este silencioso, estreito e cúmplice corredor que me impõe o vestígio invisível das passagens e dos seus testemunhos deixados no ar latente de todos os mistérios ocultos à simples percepção. Num futuro remoto serei também oculto a todos que te atravessam de igual modo como o faço hoje, agora, neste instante que já deixou de ser. Mas serei. Sei que serei. Serei o testemunho silencioso da minha passagem. Impossível dissociar a vida que vivo com aquela que outros viveram. Impossível ver que tudo isto é virgem ao encontro com a minha singular e única passagem. Impossível dissociar aquele que agora vive com o testemunho oculto de quem ali já viveu ou já passou. Entrego-me à minha inconsciente força que me impele para a frente, para o horizonte dos lugares, para o objectivo da mente, e atinjo-te finalmente porta vidrada que dás lugar ao templo das notícias: vejo-te agora, ofegante sala de redacção.
Muitos já saíram. Já se livraram de mais um dia a lutar contra as marés dos altos e baixos provocados pela árdua concorrência, a analisar as flutuações das vendas, os discursos apreensivos do director, o despejar culpas nalguns colegas de trabalho e o riso sarcástico e hipócrita daqueles que escrevem “bons artigos” face à suposta falta de engenho ou à falta de mediatismo dos outros que escrevem sobre aquilo que realmente deveria interessar às pessoas. Mas enfim... Atravesso a ampla e devidamente organizada sala de trabalho onde cada jornalista tem a sua secretária, a sua notícia para desenvolver:
- Então João, tu por aqui? – Perguntas-me surpreendido, Nuno.
Nuno Delgado: és o novato cá da casa. Concluíste o curso de Jornalismo no ano passado e foste admitido aqui na Gazeta este ano. Fazes-me lembrar a mim próprio quando aqui cheguei: novo, sem experiência mas cheio de boa vontade e dinamismo. Os teus pais ainda se preocupam muito contigo: fartam-se de telefonar para perguntar se está tudo a correr bem, se te estás a adaptar e entram em pânico sempre que descobrem que irás dar cobertura a uma notícia que envolve algum perigo. Se fosse por vontade deles, passarias a vida a revelar notícias de um mundo inventado, seguro dos homens que fazem este.
- Sim, infelizmente surgiu uma “emergência”. Por mim, estaria em casa a descansar que bem preciso.
Estaria refugiado no meu recanto, apreciando a beleza das coisas, o silêncio intrínseco a elas, relembrando dentro de mim próprio fragmentos da minha vida, despontando antigos sorrisos relegados do agora eu e colados em cada imagem de belas memórias, revoltando antigas angústias e, quase de certeza, involuntariamente alimentando esta que me persegue agora: de estar sozinho. Mas apesar disso, talvez no refúgio do meu recanto, eu poderia num dado instante, numa mínima fracção de tempo reluzir-me de umas novas ilusões onde eu pudesse novamente me agarrar.
- Estou a ver que o Paulo não te deixa descansar. Mas também se compreende: A Gazeta já teve melhores dias e tu ainda és dos poucos que faz isto andar para a frente. Devias estar contente por seres assim... importante!
Achas-me importante rapaz? Engraçado ver que tu de certa forma me admiras, me segues o exemplo, me colocas num degrau superior ao da maioria, e que por isso mesmo, me tentas atingir na tua procura de aspiração e realização pessoal.
- Então e que emergência é essa? – Perguntas-me com um olhar intrigado. Vejo que, à medida que dialogas comigo, se solta em ti um certo grau de nervosismo. A tua mão rodopia na sua pujante força juvenil um lápis suspeito de dúvidas e interrogações. O teu pé agita-se freneticamente: ora esbatendo o chão rígido que nos prende à terra, ora pulando para o ar de todas as liberdades.
Será que esta emergência te perturba?
- Ele não me disse nada. Apenas disse que precisava de vir cá o mais depressa possível.
A história continua-se mas não vale a pena conhecer muito mais. No fundo, isto é só um momento de nostalgia.
Por vezes é bom olhar para aquilo que fizemos no passado e ver o que entretanto mudou. É curioso ver que ao longo da vida vamos sendo várias pessoas. Somos o resultado de tantas pessoas que trabalharam para chegar a uma só. Talvez isto seja a metáfora daquilo que é a Humanidade.
A história que se podia ter tornado em mais uma das tuas obras. Ainda me recordo =)
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