Depois da chuva




Depois da chuva, o silêncio. Entre o vagar que a natureza dita e o ócio que me convém, a noite adensa-se clandestina entre as ruas anónimas desta cidade. De tempo a tempo, num compasso irregular, interrompe-se este silêncio para dar lugar à passagem de um carro que desce, quase deslizando, pela rua.
Do meu pequeno mas confortável quarto, escondido entre a amálgama cimentada deste prédio, imagino o mundo na invenção de mim próprio vivendo-o. Imagino o rumor de todas as coisas acontecendo em simultâneo, o arfar da vida neste mistério oculto de estar só na presença de outros. Imagino metade da cidade já dormindo, repousando no seio materno da noite, não sabendo que lá repousando se cumprem, inconscientemente, ao destino de lhe obedecer. Da outra metade, mais complicada, a que está em movimento, rodopiando como peões no seu eixo, fica-me a curiosidade imaginativa de quem julga ter algo em comum com aquele que, agarrado à insónia, contempla o milagre da existência.
 Neste quase desligar da consciência, entre a linha ténue que delimita a presença e a ausência de mim a mim próprio, quase que posso abandonar-me numa espécie de libertação de amarras orgânicas, puramente físicas, para viajar por entre os meandros das coisas imateriais, sorvendo em cada passo da viagem, o princípio da minha partida. Escrever de noite é ter a leve suspensão da descrença que me permite viajar no desconhecido sem que seja necessário interromper a vigília pelo sono. Se eu pudesse escrever enquanto sonho, isso sim, seria no mínimo,  interessante. Sonhar é não questionar o que se vê. Não existe espaço para a razão num sonho, embora seja a razão que delimita o espaço onde sonho se cumpre.

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