A primeira vez que te vi


Haverá sempre em mim a miragem da tua aparição. Um mecanismo que se auto-perpetua no tempo, numa espécie de compasso que se move no desenho de um círculo que nunca se poderá encerrar. Muito embora o tempo se desdobre e passe no seu modo de volver os dias, o ímpeto da tua aparição ainda ecoa  dentro de mim tal como o sino grave de uma aldeia  quebrando o tépido silêncio da noite. É como se pudesse separar em mim dois tempos bem distintos e apreciá-los como duas margens do mesmo rio: o antes e o depois de ti. Antes de ti, era livre e andava pelo mundo como quem está só de passagem, julgando que a mais duradoura de todas as coisas era o esquecimento. Depois de ti, constatei que o esquecimento é afinal a coisa mais passageira de todas quando se opõe ao que a alma procura. Por isso, se numa margem da minha vida tudo se esquece na passagem do rio, na outra tudo quanto acontece amplia a dimensão do já acontecido. Nessa margem do rio ergo o cais onde todos os meus desejos de te abarcar se fixam. E se estou perdidamente preso a esse cais, na esperança remota que um dia apareças, é simplesmente porque as coisas que na vida mais nos prendem são aquelas que, sem explicação ou razão própria, nos fazem sorrir. E não há nada mais perigoso que aquele sorriso que nos beija completamente os sentidos, porque após esse já nenhum outro se pode equiparar. E dos perigos maiores, foi precisamente esse que me aconteceu quando te vi pela primeira vez, a rasgar no princípio da manhã, como a luz da aurora, o vulto negro da multidão que se movia lentamente, quase inerte, sobre aquela longa e apertada passadeira rolante que parece precipitar, em cada um, o traço mecânico da sua personalidade – pois ora enche de inércia as pessoas pachorrentas, ora acelera a cinética das pessoas desenfreadas. Mas naquela manhã todas as pessoas, quando comparadas contigo, possuíam o traço mecânico da inércia e assim se moviam como se os seus corpos estivessem presos ao chão, como se a gravidade fosse tanta que nenhuma força se lhe poderia opor. Só tu, num alvo contraste luminoso, parecias livre no teu caminho, num caminhar de passos curtos graciosamente céleres, quase levitando sobre o chão, como se não houvesse gravidade ou inércia do mundo que te pudesse prender. E eu, que vinha a descer as escadas cinzentas da rede metropolitana de Lisboa, em Entrecampos, vi-te de costas com os teus cabelos castanhos-escuros, lisos como uma cascata a quebrar-se suavemente sobre os teus ombros finos enquanto te movias celestial por entre a multidão alheia. Logo ali, de súbito, senti um sorriso inexplicável a apoderar-se de mim, primeiro do meu rosto e depois da minha alma. Ou teria sido, na verdade, na ordem inversa? O que é certo e disso tenho a certeza é que, após esse sorriso, nasceu em mim a necessidade quase obsessiva de te conhecer, de saber quem eras e porque razão se emanava de ti uma força que me atraía na razão inversa da distância. Acelerei o meu passo para não te perder e, embora não tivesse ainda visto o teu rosto, sabia que o traço maior da tua beleza ainda estava por descobrir. Por entre a multidão densa a tua figura entrevia-se sinuosamente fugidia – tal como o raiar da madrugada que nasce atrás de uma nuvem pesada.  «Mas para onde vais?» perguntava-me repetidamente como que ludibriado pela tua aparição fugidia. Impulsionado por uma força de ânsias indescritível, acelerei novamente o meu passo largo e não fosse a luz que se emanava de ti, talvez te tivesse perdido. Eras a única peça de cores vivas no meio daquele obstáculo de gente cinzenta, daquele mero conjunto de sombras embaciadas.
        Quando entrei no metro, naquele comboio destinado à escuridão vazia da urbe, pude apreciar-te no teu todo. Pude confirmar a suspeita íntima da tua beleza. E pude constatar, com um prazer finamente doloroso, que a tua beleza não é a apenas a soma das tuas partes – é antes a multiplicação conjunta de todas as tuas partes a se emanarem de ti, a projectarem-se para a vida, com um ímpeto de força e presença de que não se acredita até nos atingir no centro íntimo da alma. Nesse momento, único, voltei a sorrir. Sorri como uma criança que não entende o que vê mas que retira do que vê apenas o essencial: a diferença entre o que a faz feliz ou não. Nesse compasso de tempo indefinido, o metro continuava o seu caminho curto, entre a estação de Entrecampos e a Cidade Universitária. Apesar do barulho metálico, do chocalhar frenético das rodas sobre as calhas subterrâneas e do diálogo imperceptível das pessoas atropelando-se umas às outras, entre nós  o silêncio das palavras remetia-me para um diálogo imaginário. «O que lhe digo...? Tudo o que eu disser será ridículo. Não há frase que transmita o corpo de sensações que a sua presença me transmite! E caso houvesse, seria mais ridículo ainda dizê-la. Corrompê-la neste ambiente, neste contexto, seria uma traição imperdoável para mim e para ela, para nós...»  O coração latejava-me dentro do peito de tal forma que todas as costelas me doíam no impacto vigoroso do seu pulsar.  Entretanto, o metro chegara ao meu destino. A Cidade Universitária esperava ansiosa por sorver os primeiros passos da minha longa caminhada. As portas abriram-se e um comboio de gente saiu deste outro, encaminhando-se sobre as calhas de um trilho desconhecido e que não me interessava saber. Só tu me prendias a atenção e a curiosidade. Para onde irias? Sairias ali também ou prosseguirias naquela linha imaginária do infinito? Queria saber obsessivamente para onde ias como uma criança que quer saber, a todo o custo, para onde a levam. No entanto, faltava-me a coragem ingénua da criança que lhe permite fazer as perguntas mais importantes sem que se lhe oponha uma morosa coacção moral. «Para onde vais?» Não tive coragem para ser ingénuo e fazer esta pergunta muito simples. Se não me interessasse saber realmente para onde tu ias, talvez, quase de certeza que a teria feito. Mas quando o nosso interesse é genuinamente forte, até a coisa mais simples parece de uma complexidade intransponível. O desenrolar dos acontecimentos, no entanto, acaba por nos dar todas respostas. Quando saí do metro, feliz me dei conta pelo método mais cómodo de todos - o da simples observação -  que o teu caminho era, afinal, também o meu.  No entanto, apesar de duas  pessoas poderem percorrer o mesmo caminho isso não significa que o partilhem...

Comentários

  1. Às vezes a primeira vez pode também ser a ultima ..... são meros instantes da nossa existência.

    ResponderEliminar
  2. Conheci a pouco tempo o teu blog, e já vi que publicaste um livro pela qual estou bastante curiosa. Mas tenho de te dar os parabéns, é extraordinário a forma como te expressas, eu esta a ler este excerto e senti que estava na própria situação, não sei se me fiz entender...
    Espero que tenhas sucesso na tua vida profissional, pessoal, e com as vendas do livro actual para que possas pensar em publicar um outro no futuro. Beijinhos

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares