Às voltas pelo mundo. Parte 1


A noite já tinha descido de tal forma sobre a terra que esta já não podia conter em si os seus próprios arrepios. Era, pois, de sobremaneira suave a silenciosa crepitação que cada passo da noite impunha sobre a pele da terra. Mas se a noite descia sobre a terra, o céu, esse, mantinha-se distante e espraiava-se de estrelas cintilantes, intocáveis como sonhos inatingíveis. Só a lua, farol da noite, mantinha o seu seio disponível para acomodar, no seu leito, os sonhos de uma criança adormecida. Ao olhar para tudo isto, o João, que estava sentado numa daquelas cadeiras onde podemos baloiçar a inclinação dos nossos sonhos, virou-se para o pai, que estava sentado numa daquelas cadeiras rígidas onde a única coisa que baloiça é o ranger agudo do tempo sobre as madeiras, e disse:

Vou conhecer todas as casas do mundo.

– E achas isso possível?

– Pronto, somente aquelas que valerem a pena conhecer.

– E como farás tu essa distinção?

– Não andei a estudar arquitectura para nada. Mal de mim se chegasse ao final do curso e não soubesse, ainda, distinguir a boa da má arquitectura.

– O que vais fazer, portanto, é conhecer a boa arquitectura. Certo?

– Sim.

– Então e achas que mesmo a boa arquitectura não te poderá desiludir?

– Obviamente que sim. Mas isso é porque nem todo o espaço serve o espaço próprio de cada um. Nem todo o espaço, ainda que bem pensado e erigido, permite um fiel ajustamento à ressonância íntima de cada um. Há uma qualquer acústica que vai para além da ciência e da arte.

– Muito bem. O teu plano é ousado. O que vale é que ainda és um jovem, logo tens muito tempo para o cumprir ou até mesmo para desistires dele.

– Por ser jovem é que não tenho tempo a perder. Os velhos é que se podem dar ao luxo de perder tempo porque o próprio tempo já se perdeu deles.

– Quando chegares à minha idade logo conversamos. Quero ver se continuas a achar isso. Para mim o tempo tornou-se mais precioso que nunca. Valorizo-o a cada instante. E por isso não me vês por aí a dar voltas pelo mundo desnecessariamente. Cada coisa que um velho faz, fá-lo porque sabe que vale a pena fazê-lo. Quando vês um velho sentado num banco do jardim não penses que ele está a perder o seu tempo. Ele está a vivê-lo, segundo por segundo. Olhar para uma paisagem é o mesmo que vivê-la. Quem vive está, no fundo, a olhar para uma paisagem também.

– Bem pai… acredito que tudo quanto digas deverá ter o seu sentido. Mas o meu sentido está no sentido oposto do teu. E isso não significa que estejas errado e que eu esteja certo. No fundo, isto é como uma auto-estrada: esta só faz sentido se tiver dois sentidos. Pois se assim não fosse, a maior parte do mundo andaria em contra-mão. O bonito da vida é ver que uns vão para Lisboa e outros voltam de Lisboa. O bonito da vida é sentir que existe sempre um caminho de ida e outro de volta. Um caminho que nos faz crescer e um caminho que nos faz tomar a conta do quanto valeu a pena ter crescido. Por tudo isto, perdoa-me, Pai, se hoje te digo adeus. Perdoa-me, se hoje te pareço demasiado ousado ao ponto de querer crescer para além da medida que julgas adequada para mim. O meu caminho, hoje, é oposto ao teu. Não podemos, por isso, andar de mãos dadas. Um dia, quando for a altura disso, voltarei pela mesma estrada para te dar as mãos outra vez. Pois aí, sim, estaremos a caminhar no mesmo sentido.
  

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