A última vez que te vi



Em tempos de despedida surgiu-me esta inquietação: qual é o momento mais marcante entre duas pessoas? Aquele que as une ou aquele que as separa? Talvez a resposta reside algures numa segunda divagação: pois é preciso analisar primeiro o que estamos a unir e o que estamos a separar.

Mas vamos acreditar que o momento mais marcante é aquele que as separa. Visto que é nesse momento que me encontro agora. O presente é que deve sublinhar a importância das coisas. E verdade seja dita, a maneira como duas pessoas se separam revela em muito aquilo que as uniu. Claro está que não estou a explicitar se esta separação é temporária ou definitiva, se é uma separação de barreira física ou espiritual, se é feita por livre arbítrio ou por uma imposição externa de que a morte é o exemplo máximo. Talvez, o melhor nem seja explicitar. Não vou restringir a separação a nenhuma destas separações. Vou sim divagar pela separação como quem, a querer fugir dela, se une inteiramente a ela. E como todas as boas divagações, vou primeiro levantar uma série de dúvidas para depois tentar encontrar uma espécie de resposta para elas.

Em que medida pode uma separação ser marcante?

Penso que uma separação tem tanto mais a marcar quanto mais incerta for o seu destino. A incerteza amplia todas as medidas visto que ela própria não tem limites. A incerteza existe naquele lugar próximo do infinito e, assim, quem chega à incerteza embrenha-se no infinito.

Uma pessoa morre. Para onde vai? Ninguém sabe. Todas as religiões arranjam forma de nos reconfortar, de nos sentar numa cadeira onde o sofrimento não parece pesar sobre a coluna. No entanto, mesmo quem está sentado sente algum peso, alguma dor, ao fim de algum tempo. Toda a gente sabe que a posição mais confortável do homem é estar deitado. É dessa posição que nascem os sonhos. Mas ninguém aceita o caixão, ninguém sente conforto nisso. A dor que resulta da morte amplifica-se pela incerteza. A separação marcante é aquela que é marcada pela incerteza. Dito isto por outras palavras e para responder à primeira questão: uma separação pode ser marcante na medida da sua incerteza. Quanto maior esta, maior o significado da outra.

O que tem a marcar uma separação?

A separação tem a marcar um novo início. Um barco que se despede do seu cais, onde estava seguro e bem atracado, vê iniciar-se por um mundo completamente novo à medida que se vê distanciar do outro. Um barco nunca esquece de onde partiu. Por vezes, de tão perdido que está, a única orientação que ainda lhe resta é aquela que lhe indica o caminho de regresso. Todavia, regressar é impossível. O caminho está lá, passo por passo, mas um barco não consegue fazer marcha atrás. E o vento, esse, sopra numa só direcção.

O que é curioso é que muitas vezes quando chegamos ao outro cais, àquele para onde fizemos o nosso rumo, encontramos nele pessoas que estavam naquele outro de onde partimos. Isto sucede porque também aquelas pessoas navegaram pelo mar, no seu próprio barco, na procura das mesmas coisas que nós. Não é, por isso, de todo surpreendente que as voltemos a encontrar.
Talvez a vida seja um pouco isso: andar de cais em cais, cada um no seu barco, e as pessoas que reencontramos são aquelas cujo navegar vai no mesmo sentido que o nosso.

Quantas vezes é preciso nos separarmos de uma pessoa para termos a real noção do quanto estávamos ligados a ela?

Como dois bebés siameses que, por já terem nascido ligados um ao outro, nem se dão conta da ligação que os une, porque essa ligação é de tal forma natural, de tal forma intuitiva que nem parece, para eles, existir. Porventura alguma vez parámos para pensar que temos a mão ligada ao antebraço? Alguma vez sentimos que essa ligação existe? Não, é claro que não. Essa ligação é tão natural, tão intuitiva, tão perfeita que, no fundo, não vale a pena parar para pensar sobre ela. Darmo-nos conta dessa ligação enquanto ela existe é o primeiro sinal de que ela não funciona: como quando temos dores no punho e procuramos ver o que se passa de errado naquela articulação. No fundo, só nos damos realmente conta que a mão está ligada ao antebraço no dia em que, por azar, perdermos a mão. E aí sim, veremos (como nunca vimos) a maneira harmoniosa como a mão estava ligada ao antebraço e como toda aquela ligação fazia sentido. E aí sim, veremos (também como nunca vimos) que o que não faz sentido nenhum é ter um antebraço sem a sua mão.

Voltando aos bebés siameses, enquanto estes são o que são, isto é, parte um do outro, eles não se dão conta da ligação que os une. No entanto, quem está de fora vê bem que eles não conseguem viver um sem o outro, pois a vida de um está na do outro. No entanto, se questionarmos os bebés siameses acerca desse facto qualquer um deles não tem, ainda, a capacidade necessária para o reconhecer. Só mais tarde, após a intervenção de uma mão capaz de os separar e conservar-lhes a vida, é que poderão dar-se conta do quanto estavam ligados um ao outro. Pois ao verem-se longe um do outro, pela primeira vez, verão a parte do outro (que julgavam ser sua) e que lhes falta agora. E mesmo que o passar dos anos os convide a esquecer aquela ligação, terão sempre uma cicatriz capaz de os relembrar.

Por tudo isto, a pergunta que já por si sugeria uma afirmação, parece encaminhar-nos para esta resposta: que, por vezes, só a separação de duas coisas permite colocar em evidência o quanto ligadas estas sempre estiveram, ainda que inconscientemente.


Não pode a separação, contraditoriamente, unir mais do que separar?

Para dar resposta a esta pergunta, vou recorrer a um episódio da minha vida. Quando andava no secundário e me preparava para concluir o 11º ano, tive um incidente que me obrigou de mudar de escola e a abandonar, assim, os meus colegas de então. Vi-me, inesperadamente, obrigado a dizer adeus a pessoas que se estavam a tornar próximas de mim e das quais não me queria separar. Ao partir, não sabia como iria ser dali para a frente. Acabava de sentir que me tinham forçado a entrar num barco que não desejava e a abandonar um cais aonde se quer chegar e nunca mais partir. Ao encetar essa viagem, levava comigo uma série de dúvidas: alguma vez voltarei a reencontrar aquelas pessoas que estavam comigo naquela escola? Continuarei eu a sentir por elas aquilo que sinto neste momento? Continuarão elas a sentir por mim o que sentiam por mim? Apesar desta separação, continuaremos nós unidos?

O tempo, esse, acaba por nos dar todas as respostas. E o que o tempo acabou por me ensinar é que a amizade é o amor incompreensível que une as pessoas que estão destinadas a ficarem ligadas para sempre. Digo que é um amor incompreensível porque há pessoas que são nossas amigas e pelas quais fizemos muito pouco para colher a sua amizade. No entanto, essa amizade existe. E há outras pessoas por quem fizemos muito para colher a sua amizade, e a única coisa que recebemos delas é uma simpatia cuja natureza é perecível ao longo dos tempos. Podemos ser simpáticos com pessoas de quem gostamos sem sentirmos a real necessidade de nos inteirarmos da vida delas. A amizade, por outro lado, não suporta ser apenas simpática. Se um amigo fosse apenas simpático, sentiria remorsos por sê-lo. A simpatia age por reflexos: ninguém é simpático para quem não lhe oferece a sua simpatia. A simpatia é uma espécie de moeda de troca: tu dás a tua e eu dou a minha. A amizade funciona de maneira completamente diferente: ninguém dá para receber e ninguém espera receber para dar.

A diferença que mais distingue a simpatia da amizade revela-se, infelizmente, na morte: quando nos morre uma pessoa que nos era simpática, choramos os momentos que estivemos com ela e sentimos o quanto ingrata é a vida; quando nos morre um amigo choramos toda a sua vida e a nossa, pois ambas viviam juntas.
Ora, voltando ao início, o que o tempo me ensinou foi precisamente a distinguir isso: a simpatia da amizade. E para minha própria surpresa, constatei que aquela separação no secundário só serviu para me unir mais a alguns dos meus colegas, sobretudo a um, com os quais mantenho, ainda hoje, uma relação que passou bem para além das fronteiras da simpatia. Hoje sou mais amigo deles do que era quando me separei deles. E, no entanto, vejo-os menos vezes e falo com eles menos vezes. No entanto, conheço-os agora melhor que nunca. A separação serviu, apenas, para trazer ao de cima aquilo que sempre nos quis ligar: a amizade.

Será que uma despedida pode ser uma das coisas mais belas da vida?

No fundo, só nos despedimos de quem não nos queríamos realmente separar. Só assim faz sentido. Quando assim não é e nos “despedimos” de quem nos é indiferente, a única coisa que podemos apreciar é a beleza de uma tela falsa. Isto é, a beleza daquela tela teria outro valor caso fosse verdadeira – como não é, vale pouco.

Uma despedida é belíssima porque comporta em si duas forças opostas que não se queriam confrontar: a da união e a da separação. A natureza dita, por ironia, que é no encontro dessas duas forças que resulta o desencontro entre as pessoas. Não é, por isso, raro que na concentração dessas forças nos faltem outras: como aquela que nos impede de chorar.

Cansino-Asséns sentia que a beleza o esmagava e, por isso, pedia a Deus que o defendesse e que o salvasse da beleza porque, para ele, “há demasiada beleza no mundo”.

Ao anteceder a separação, a despedida liberta toda a beleza oculta do mundo pois constitui em si o momento onde tudo se reúne pela última vez. É preciso, pois, pedir a Deus, como Cansino-Asséns fazia, para que Ele nos salve dessa beleza esmagadora.

A minha despedida: meia-noite em Paris

Ontem fui ao cinema ver o filme meia-noite em Paris. E achei engraçado que aquele filme pudesse reunir tantas coincidências com a minha actual situação. Num filme que apela ao saudosismo e à nostalgia, não pude deixar de sentir que os amigos que estavam comigo naquela sala de cinema constituem, a par com outras pessoas, a Belle Époque da minha vida.

É por todas essas pessoas que hoje escrevo. Bem ou mal, a escrita sempre acompanha parte do que sentimos.

A última vez que te vi foi como se te visse, outra vez, pela primeira vez. E embora fosse eu quem estivesse de partida, tu mantinhas-te num passo ligeiramente adiantado. Talvez já em Paris à minha espera.

Comentários

  1. "Nos condensamos, nos dissolvemos, mas continuamos resistindo... há de ser uma das "conseqüências do eu", que hora por outra vaga desnorteado por conta das respostas que não lhe foram dadas "

    Rhayra

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