O tempo condensa-se e depois dissipa-se. Como uma nuvem. Deus sobre que nuvem pairas?


Hoje de manhã, ao acordar, vi uma nuvem larga no céu. Ao olhar para o movimento do céu, percebi que era a única que se mantinha placidamente estática. Isto é, era a única que não se deixava arrastar pelo vento. Era como se quisesse dizer: «A mim não me arrastas, eu própria tenho o meu jeito de caminhar. Quando for para ir, irei pelos meus próprios passos».

Ao observar isto, não pude deixar de me interrogar se eu próprio não era também como aquela nuvem:

- Se eu próprio não resisto também a uma força qualquer, a uma força que não compreendo mas que existe, e que, por existir tenho que me opor a ela, continuamente, para eu próprio poder existir no espaço que me foi confiado a habitar?

- Se eu próprio não me julgo também diferente de todos os outros por querer ir no meu caminho, no meu jeito de caminhar, mesmo que, no fim, vá parar ao mesmo lugar?

- E se eu próprio não condenso também em mim o passar do tempo para depois passar com ele?

Depois de ter lançado para mim próprio estas interrogações, fui-me embora. Só voltei depois ao final do dia, como que à procura das respostas no preciso lugar onde tinha deixado as dúvidas. E é curioso verificar que é no desaparecimento das coisas que encontramos grande parte das nossas respostas: pois quando regressei ao terraço e fitei o céu à procura daquela nuvem, ela já não estava lá.

Cheguei então à conclusão que sim, que também eu sou como aquela nuvem. «Quanto em mim já não se condensou para se dissipar também?»

E com este exemplo da nuvem, surgiu-me a imagem de que tudo na vida parece obedecer a um ciclo. Seja ele o da água ou do que seja. E eu devo fazer parte de um qualquer ciclo que não vejo, que não compreendo, e que me empurra em frente para o lugar que está, paradoxalmente, atrás de mim. O tempo parece ser o compasso através do qual se desenha este ciclo. As mãos que o seguram e o movem, imprimindo neste movimento a força à qual resistimos, deverão ser de Deus.

Deus surge, aqui, como a força necessária para completar um ciclo. Se tivermos esta linha do raciocínio em conta, veremos que, paradoxalmente, resistimos a Deus ao mesmo tempo que lhe pedimos ajuda. Resistimos a Deus porque há qualquer coisa neste ciclo, nesta vida, que gostaríamos de mudar. Gostaríamos de termos nós o compasso na mão. E, por isso, não somos um papel suave onde Deus possa escrever. No entanto, pedimos-lhe ajuda. Porque sabemos que é ele quem escreve, quem move o compasso. É ele que manda sobre aquilo que manda em nós: o tempo.

Eu digo tudo isto mas, sinceramente, não sei o que é Deus. E não sei se alguma vez saberei. Só sei que não acredito naquilo que me dizem os livros acerca dele. Um livro é igual fonte de sabedoria e de ignorância. A sabedoria começa no reconhecimento da ignorância. Quando se lê um livro, um bom livro, é preciso reconhecer onde está a ignorância e onde está a sabedoria. A sabedoria de um livro está no reconhecimento da sua própria ignorância. Por isso, os livros que mais prazer me dão de ler são aqueles que me dizem: talvez Deus seja isto. Se eu próprio não gostava que alguém num livro escrevesse sobre mim como se me conhecesse melhor que eu, por que razão haveria de Deus ficar contente com esse tipo de livros?

Todos os livros sagrados só são sagrados porque já mataram tanta gente quanto salvaram. Os livros não sagrados não têm tanto impacto sobre a humanidade. Se um livro começa a matar muito é provável que se esteja a aproximar do sagrado: pois há muita gente que pensa que a sua salvação se encontra na morte dos outros.

Julgo que Deus nos fez ignorantes para que nunca soubéssemos o que ele é. Deus conhece bem a ambição do homem: se este soubesse o que está acima dele, não viveria descansado até o ultrapassar.

Comentários

  1. "Nos condensamos, nos dissolvemos, mas continuamos resistindo... há de ser uma das "conseqüências do eu", que hora por outra vaga desnorteado por conta das respostas que não lhe foram dadas "

    Rhayra

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